segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010
como dois e dois são cinco
Paradoxais? Ao meu ver, todas as tentativas de compreender sentimentos alheios o são, caso queiramos defini-los em algumas palavras, de doce, ardente ou amarga pronúncia, e sob cuja harmonia chamamos de ‘boa literatura’. Rejeitar o momento da decisão, prostrar-se ‘e deixar que a vida resolva por si’, parece-me, em discursos assim, uma sugestão agradável. Mas como deixar que ‘a vida resolva’ se a vida somos nós?
Enquanto deixamos a vida resolver, a morte nos olha com certa piedade, até certa ironia, quase sussurrando-nos que ela é a única a quem poderemos – querendo ou não – contar e, por isso, deveria ser justamente a quem nunca devemos ignorar.
Com o nó no peito de quem teve lá suas tentativas que deram errado, com todas as palavras arremessadas e as que ficaram em banho maria, sorrio para ela de volta e a asseguro: não a ignoro.
E ela sabe que, com meus olhos cansados de pequenas perdas desnecessárias, maus entendidos, esperas inúteis, crimes fúteis, eu não a ignoro. Com meu passo apressado voltado ao presente, meu tendões inflamados despreparados e insistentes, mesmo que tentasse, não conseguiria mais ignorá-la.
E ela sorri vitoriosa, já certa de que, como numa fila em um matadouro, mesmo que entre piruetas e fantasias, irei (iremos) até ela, e como bichos que somos, é irônico não sentirmos o cheiro do que ela já sabe, mesmo distraída: até o último instante seremos (serei), deveremos ser.. carne VIVA.
quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010
Desvalorizei as paredes
Trabalhei na Apala como voluntária por uns três anos... era o que chamam de 'brinquedista' e fazia parte da comissão do Cine-Apala (promovíamos um filme mensalmente e, em seguida, discussões com as crianças sobre os temas).. Além disso, ia para lá duas vezes por semana, aproximadamente.
Para ser sincera, eu não trabalhava nada. Só brincava! nós fazíamos coisas divertidas.. Os maiores esforços eram no sentido de que aquelas crianças, todas elas, se mantivessem crianças, apesar de tudo.. e era super fácil isso. Ao contrário dos adultos - tem pouquíssimos lá, porque a Apala é exclusivamente para crianças - elas, claro, sentiam as dores, as ânsias, o mau humor na hora em que passavam por uma quimioterapia ou coisa assim.. mas passada a sensação ruim, a febre, o cansaço.. elas já estavam brincando com a gente, pulando.. rindo.. Fazíamos, aprontávamos, discutíamos de tudo. Lembro quando passei um tempão sem ir lá, e um dia cheguei e encontrei o Erivan - 11 anos, muito meu chapa, me ensinou a fazer caixinhas de presentes de papel e ser 'goleira' com uma perna só...- e perguntei: "E aí, Eri.. o que anda fazendo da vida??" Ele respondeu na hora: " Arte, né, tia??". O 'artista' hoje tem seus 14 anos, e ganhou uma prótese no ano passado.
Aprendi coisas incríveis.
A ser mais criança do que quando eu tinha a faixa etária de criança (e, com essa minha voz, não seria difícil retornar à infância sempre que quisesse).. a inventar brincadeiras para tornar as coisas mais leves.. a improvisar..a amar e admirar aqueles guerreiros-mirins que, por não possuírem a exata medida do que estavam superando, simplesmente superavam com toda dignidade e doçura que, sinceramente, eu não sei se teria se estivesse em seus lugares. Eles eram lindos, sabiam bem de suas medidas infinitas e, juro, não se limitavam por dizerem a eles que tinham câncer, ou eram meramente crianças, ou pobres, ou pequenos e frágeis..
Mas aprendi coisas mais graves.
A ter o maior papo cabeça com a Lu, com a Maria do Carmo, e, quatro dias depois, descobrir que não iria mais ver elas. A passar uma tarde inteira com o Erivaldo falando sobre minhas dores de cotovelo e sobre a saudade dele de Jequiá da Praia, e, a noite, saber que não iria mais encontrar ele... a traçar planos mirabolantes com a Rose sobre como a mãe dela iria deixar ela namorar e a escolhermos perucas e pulseiras no bazar da Apala. A jogar vídeo-game e brigar, brigar mesmo, com o Wellington porque ele se aproveitava da minha burrice no jogo e ficava enrolando, e, no dia seguinte, saber que ele teve a pior noite de todas, para não ter mais nenhuma... tudo isso para ficar refletindo sobre essa coisa de se perder a quem se ama (a que será que destina?)
Eles aprendiam a ir.. e eu, a ficar.. e a não mais desconsiderar ou esquecer a possibilidade da minha própria 'ida'.. eu tinha tanta raiva quando isso acontecia.. Chorava horrores, jurava para mim mesma que não iria mais para lá. Não queria me envolver, não queria ver eles sofrerem para, em seguida, sofrer com o desaparecimento deles
Se eles estavam tristes, nós fazíamos fantoches, pipoca, e ficavam alegres. Se estivessem brigando, conversávamos e eles faziam as pazes.. Se estivessem tímidos, dávamos um jeito de desarmá-los. Se sentiam dor, ficava ali, quietinha, dando uma força e concentrando todas as minhas forças mentais para que aquela dor passasse, mesmo sabendo que só o remédio e o tempo, talvez, pudessem curar...
Mas, e se eles desaparecessem? O que poderia fazer? Nada. A morte era a única coisa irreparável, irrevogável, definitiva. Não sei como, mas, pouco a pouco, a raiva se transformou em um respeito e em um raciocínio infantil de que, para compensar minha impotência diante dela (da morte), eu decidisse que absolutamente todas as outras coisas - na vida - fossem possíveis e, mais que isso, executáveis... ou seja, o que eu pudesse fazer para que todas as coisas boas possíveis pudessem ser feitas, eu faria.
Para ser sincera, eu não trabalhava nada. Só brincava! nós fazíamos coisas divertidas.. Os maiores esforços eram no sentido de que aquelas crianças, todas elas, se mantivessem crianças, apesar de tudo.. e era super fácil isso. Ao contrário dos adultos - tem pouquíssimos lá, porque a Apala é exclusivamente para crianças - elas, claro, sentiam as dores, as ânsias, o mau humor na hora em que passavam por uma quimioterapia ou coisa assim.. mas passada a sensação ruim, a febre, o cansaço.. elas já estavam brincando com a gente, pulando.. rindo.. Fazíamos, aprontávamos, discutíamos de tudo. Lembro quando passei um tempão sem ir lá, e um dia cheguei e encontrei o Erivan - 11 anos, muito meu chapa, me ensinou a fazer caixinhas de presentes de papel e ser 'goleira' com uma perna só...- e perguntei: "E aí, Eri.. o que anda fazendo da vida??" Ele respondeu na hora: " Arte, né, tia??". O 'artista' hoje tem seus 14 anos, e ganhou uma prótese no ano passado.
Aprendi coisas incríveis.
A ser mais criança do que quando eu tinha a faixa etária de criança (e, com essa minha voz, não seria difícil retornar à infância sempre que quisesse).. a inventar brincadeiras para tornar as coisas mais leves.. a improvisar..a amar e admirar aqueles guerreiros-mirins que, por não possuírem a exata medida do que estavam superando, simplesmente superavam com toda dignidade e doçura que, sinceramente, eu não sei se teria se estivesse em seus lugares. Eles eram lindos, sabiam bem de suas medidas infinitas e, juro, não se limitavam por dizerem a eles que tinham câncer, ou eram meramente crianças, ou pobres, ou pequenos e frágeis..
Mas aprendi coisas mais graves.
A ter o maior papo cabeça com a Lu, com a Maria do Carmo, e, quatro dias depois, descobrir que não iria mais ver elas. A passar uma tarde inteira com o Erivaldo falando sobre minhas dores de cotovelo e sobre a saudade dele de Jequiá da Praia, e, a noite, saber que não iria mais encontrar ele... a traçar planos mirabolantes com a Rose sobre como a mãe dela iria deixar ela namorar e a escolhermos perucas e pulseiras no bazar da Apala. A jogar vídeo-game e brigar, brigar mesmo, com o Wellington porque ele se aproveitava da minha burrice no jogo e ficava enrolando, e, no dia seguinte, saber que ele teve a pior noite de todas, para não ter mais nenhuma... tudo isso para ficar refletindo sobre essa coisa de se perder a quem se ama (a que será que destina?)
Eles aprendiam a ir.. e eu, a ficar.. e a não mais desconsiderar ou esquecer a possibilidade da minha própria 'ida'.. eu tinha tanta raiva quando isso acontecia.. Chorava horrores, jurava para mim mesma que não iria mais para lá. Não queria me envolver, não queria ver eles sofrerem para, em seguida, sofrer com o desaparecimento deles
Se eles estavam tristes, nós fazíamos fantoches, pipoca, e ficavam alegres. Se estivessem brigando, conversávamos e eles faziam as pazes.. Se estivessem tímidos, dávamos um jeito de desarmá-los. Se sentiam dor, ficava ali, quietinha, dando uma força e concentrando todas as minhas forças mentais para que aquela dor passasse, mesmo sabendo que só o remédio e o tempo, talvez, pudessem curar...
Mas, e se eles desaparecessem? O que poderia fazer? Nada. A morte era a única coisa irreparável, irrevogável, definitiva. Não sei como, mas, pouco a pouco, a raiva se transformou em um respeito e em um raciocínio infantil de que, para compensar minha impotência diante dela (da morte), eu decidisse que absolutamente todas as outras coisas - na vida - fossem possíveis e, mais que isso, executáveis... ou seja, o que eu pudesse fazer para que todas as coisas boas possíveis pudessem ser feitas, eu faria.
É aquela coisa de 'viver intensamente', mas não desse jeito leviano a que as pessoas usam, sabe? Pelo contrário..com maior responsabilidade do que quando achava que tinha a vida inteira para recuperar as coisas.. e com maior abandono do que quando eu achava que não teria o dia de amanhã... queria que o que tivéssemos de vida fosse, de fato, aproveitada, entre nós... Era só uma coisa, digamos que paradigmática, que me impulsionava a pensar que, “putz, se eu estou viva, então por que não?” Por que não arregaçar as mangas, e cair no embalo das coisas que acredito? Por que ter medo e me render ao não-fazer, considerando o quão é transitória, inconstante, indefinida, imprevisível..essa roda viva.. e o quanto ela é traiçoeira e pode parar a qualquer momento, ou 'carregar nosso destino para lá'.. enquanto nos preocupamos com meras paredes, com medos de perda, de fim, de inícios.
Não me tranco mais em minha 'casa'..Pego meu colchãozinho e o coloco na porta, e prefiro dormir na insegurança de um ar puro e livre.. As desvalorizei..tal qual Mia Couto..
Desvalorizei as paredes.
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