quinta-feira, 28 de março de 2013

o que importa


 Ainda bem que o Javier nasce no dia 7 de abril. Isso me dá tempo. Tempo para separar a alegria de uma tristeza incômoda, chata, que eu jurava que não perceberia. Ou que se  percebesse, não seria com tanta insistência depois de tanto tempo. Um ano!

Acontece que foi numa quinta-feira 'santa' como esta que ele começou a mostrar sinais de chegada.  Os tais pródromos - eram contrações leves e irregulares, como cólicas - não me deixaram dormir de ansiedade e euforia ao mesmo tempo. Ele viria para mim. Finalmente conheceria meu pequeno. E ele nasceria em casa.  Depois de meses de leituras, discussões, negociações, desembolsos e organização de cada detalhe, conseguia preparar 'tudo' para que ele nascesse naturalmente, no melhor lugar do mundo: seu lar.

Pronto. É exatamente neste ponto que a dor desponta. Olho para a marca de cesariana embaixo da minha barriga: uma curva que parece o sorriso do smile, só que é aquele sorriso sem graça nenhuma. O sorriso que virou uma resposta-padrão a quem acompanhou minha frustração (sim, identifiquei, é essa a maldita sensação que não passa) e me soltou a velha-clichê-mentira de que o que importa é que vocês estão bem. (Não, não era isso o que importava. Primeiro porque a tristeza de não ter parido nunca vai suprimir a alegria de poder encontrar o Javier nesta vida..ou vice-versa). Segundo porque se ele tivesse vindo naturalmente, estaríamos 74836573647 vezes melhores. Nós dois.

A marca da cesariana, hoje, está mais discreta do que há um ano. Naquele dia, eu não conseguia vê-la porque, depois de uma cirurgia abdominal, você não consegue ter elasticidade o suficiente para conseguir fazer quase nada, muito menos olhar para baixo de sua barriga recém manipulada e recortada e colada).

As memórias vêm para mim como aqueles flashes do Lost. Ora lembro da alegria desmedida de sentir as contrações com tempo regulares. Ora lembro de quando tudo começou a perder a graça, da casa cheia contra a minha vontade, das vozes apreensivas com a demora, me mandando fazer isso ou aquilo. Ora lembro de quando, logo no início de tudo ainda sozinha de madrugada, comecei a contar as contrações num site da internet toda feliz da vida. E aí me vem em mente o dia seguinte: a voz que estava na minha casa me dizendo o que eu deveria fazer. Me mandando sair do chuveiro quente. Me dizendo que era hora de fazer o toque. Me dizendo o que era uma contração boa e uma contração fraca. Me dizendo que eu tinha que fazer exercícios.E quando eu parava, me dizia que 'eu não estava ajudando'. Eu adorava ficar só, embaixo do chuveiro. E a voz dizia ser errado.. Deixei-me conduzir ao erro na tentativa de fazer o certo, coisa comum, mas não justificável,

 Depois de tudo o que fiz e deixei de fazer, Javier nasceu num sábado de aleluia, depois de uns ultimatos do obstetra que dizia esperar até meio dia, e depois estendeu para as 14h, quando então fui para a maternidade.

Eu tinha organizado um parto domiciliar com tantos acordos e tantas promessas de que seria flexível aos profissionais que me assistiam - para que topassem me assistir-, que deixei de ser flexível comigo mesma.
Eles fizeram o que podiam, o que sabiam. Eu é que não fiz o que podia e sabia. Porque eu podia parir. E sabia que o Javier e meu corpo teriam plena capacidade de dialogar para que tudo acontecesse como deveria.

E o que eu deveria? Dizer que seria do meu jeito e pronto. Que ia montar cabana embaixo do bendito chuveiro. Deveria segurar uma faca e ameaçar fazer uma cesariana à moda antiga em quem sonhasse em encostar em mim. Ou anunciar que cortaria os dedos de quem quisesse me fazer um toque. Ou garantir que enfiaria a bola de pilates goela abaixo de quem me dissesse para não parar de exercitar 'para que o bebê finalmente descesse'.


Vem a culpa, com fé agora. Ele tinha tudo para chegar naturalmente. Eu prometi para ele que seria assim. Era a ele, só ao Javier, que eu deveria qualquer tipo de compromisso. Era ao meu corpo, só ao meu corpo, que eu deveria qualquer tipo de satisfações.E eu prometi que o ouviria. Que eu me ouviria. Que confiaria em nós e nos nossos corpos, e nas nossas almas.

A marca que tenho hoje é, sobretudo, de uma promessa não cumprida. E de uma responsabilidade que era unicamente minha, de mais ninguém.
Eu desisti. Por cansaço.
Medo, garanto-lhes, procurei-o no mais profundo de mim e não encontrei em canto nenhum, em nenhum momento, nem naquela época, nem hoje.
Eu simplesmente cheguei em um ponto em que me deixei levar. Em que estava esgotada de tantos exercícios, e ao mesmo tempo em que não conseguia descansar, também não tinha preservado minhas energias quando podia ( já que estava fazendo milhares de exercícios inúteis)

Não era a dor física (tive uma dor de dente, há alguns meses, que me doeu 974364736 vezes mais). Era cansaço. Puro cansaço.

Hoje lembro de, quando ainda grávida, uma das militantes pelo parto humanizado da qual nutro maior respeito me disse claramente:  se você não se prepara para o parto natural antes, não adianta tentar correr atrás do prejuízo durante o parto.
E então volto e me lembro que não, eu não tinha preparado direito as coisas dentro de mim. Eu não fui radical o suficiente para confiar em meu próprio corpo e mandar que o mundo se danasse. Porque na hora do parto, se a mulher não esquecer o mundo - esse mundo que crê na 'cesárea salvadora' - ela não vai parir. Porque ela se distanciou muito da natureza, de sua própria natureza, para conseguir voltar com tanta rapidez.

No meu caso, foram quase 24 anos me distanciando cada vez mais de mim, enquanto alguém com corpo. Tentava conceber a mim mesma enquanto espírito, enquanto mente, enquanto uma porta ou uma lareira, mas não enquanto corpo. Estudava  na escola o ser humano como 'algo' todo dividido. De um lado, biológico. Do outro, social. Do outro, psicológico. Do outro, físico.
E, lá, na escola, na televisão, aprendemos a ter ideias imaginárias de nós mesmos desse jeito, como se pudéssemos fazer com que a mente prevalecesse sobre o corpo ou o corpo sobre a mente, ou ambos sobre a natureza -e, ora, a mente faz parte, e é o corpo.

Então comecei a ler Edgar Morin e ficava extasiada com a crítica que ele fazia a essa concepção cheia de fragmentação. Enquanto isso, cadê a tal da praxis, gente? Vivi me fragmentando.
Agora, tento compreender isso tudo. Tento pesquisar isso tudo. E tudo começa a se encaixar, a fazer sentido. Só sinto pena que meu filho tenha pago tão caro por essa minha ignorância.
Não me julgo, só constato: ignorar a si é como ignorar a lei.. Não adianta transgredir e depois tentar justificar alegando desconhecimento.

 A frustração e a sensação de culpa por tê-lo recebido num hospital frio, extraído sem que tenha cumprido com sua jornada de nascimento até o fim - recebendo toda a ocitocina e hormônios e bactérias necessários -, a culpa por não ter sido a primeira a vê-lo quando chegou, por não ter lhe dado um abraço, por não ter deixado seu cordão  em paz até que parasse de pulsar, tudo isso vai ficar comigo.

Javier fará um ano no dia 7 de abril. É um bebê como qualquer bebê de um ano, nascido por cesariana ou por parto humanizado. É mesmo???
O que vai ficar com ele, depois de um nascimento tão frio (por mais boa vontade que tenha existido ao redor, reconheçamos a distorção da assistência ao nascimento, por favor!), talvez nem ele mesmo saiba. Não conscientemente. Mas um nascimento é um nascimento. Se desnaturalizamos e desumanizamos um momento como esse, que dirá de todos os outros que acontecerão com nós, AINDA humanos?

E para os ainda humanos, nada como a máxima do obstetra francês Michel Odent, que diz e age conforme o que acredita.
E ele acredita que
para mudar o mundo, primeiro é preciso mudar a forma de nascer.


Javier fará um ano no dia 7 de abril.
E no dia 7 de abril, prometo que estarei feliz como nunca
celebrando sua vida, nosso encontro,
  a chegada do serumaninho que me fez a pessoa mais feliz e cheia de adrenalina (e ocitocina) do mundo.

mas também não largarei mão dessa tristeza chata,bem o sei,
uma tristeza necessária para que eu nunca mais prometa,
mas defenda com unhas e dentes
a maior lição que aprendi.

terça-feira, 26 de março de 2013

a historinha do homem invisível




Era uma vez um homem invisível,
e era uma vez uma mulher que só acreditava no que via, 
ou no que ouvia, mesmo que necessariamente não visse. 
Então ela começou a ouvir uma voz doce, um tanto rouca, 
uma voz que parecia cansada e depois se enchia de força 
e dizia em alto e bom som
tudo o que ela queria ouvir
era o cara invisível.

No meio desse tempo, ela via outros homens
mas o que ela ouvia deles, metade bobeira demais
metade seriedade demais,
era real demais
e não lhe interessava.
Resultado: passavam batido, invisíveis. 

Ela só via, só enxergava, aquele que ela não via. 
embora soubesse a contradição
a fria em que se metia
(ou melhor, que não se metia, porque o invisível também era intocável),
ela insistia, e insistia, e insistia. 

certa vez entrou em apuros,
procurou-o, foi em vão
enão sabia enxergar no escuro, 
não sabia tocar sem as mãos

pensava em vento, em ar, em poesia
só queria justificar e acreditar que, sim, existia o que ela não via!
ora, se ela ouvia (aquela voz que dizia que um dia apareceria)
 havia de ser real 
- em algum lugar escondido, onde as luzes podem ficar acesas -
a voz garantia
- se veriam no final

em algum mundo, planeta, 
momento perfeito, 
oitava dimensão,
restava esperar para ver o invisível,
ou achá-lo sem mais condição

e finalmente o descobriu, conseguiu tocá-lo fundo:

era só sua imaginação.




sábado, 16 de março de 2013

tudo fica bem (e todo mundo também)


"Quero ouvir uma canção de amor,
que fale da minha situação,
de quem trocou a segurança do seu mundo
por amor,
por amor."

O Mundo anda Tão Complicado - Legião


e foi mais ou menos assim:
estava na beira do mar, em pé sobre a rocha
e queria mergulhar, mas tinha medo do frio,
tinha medo de ouriços, tubarões e dragões
mas olhava encantada para dentro,
na minha aparente segurança do lado de fora,
queria, segura na margem, apreender o que havia de inseguro no escuro profundo de tudo o que é mundo,
mas tinha aprendido que o escuro, o profundo, quase sempre é errado e perigoso,

só de olhar as águas turvando o próprio interior,
confuso, já sabia que era,
mas era melhor pular logo do que acabar escorregando.


Pode ser inferno ou paraíso astral, o milênio, 2013 que chegou apesar das profecias,
pode ser meu filho, os quase 25, os cabelos brancos ou as estrias,
Mas antes de chegar abril, do fim dos ciclos, do momento da espera, de sentar em um
banco de praça,
minutos antes e fazer a mesma coisa
durante todo o resto da minha vida,
antes de me conformar e acreditar que foi para isso ou aquilo que nasci,
antes de me orgulhar por uma vida estável, apaziguável, rentável, e bastante razoável,
antes de crer em destino, na predestinação, no apocalipse zumbi, ou numa grande missão

caí fora,
(melhor seria dizer que caí para dentro, com tudo),

e mesmo sem saber se há areia, cidade grande, ou uma ilha paradisíaca logo à frente,
nada supera esse gosto de mar, a leveza das águas, a beleza de estar aqui dentro,
e não há superação maior do que deixar a velha contemplação do que-eu-queria-e-tinha-medo, para fazer meu destino com meus próprios braços e pernas exatamente-onde-quero-estar,
e por mais que o mergulho seja profundo, misterioso e confuso,
apreender daqui de dentro é muito menos turvo,
daqui de dentro, também consigo ver rochas
e bem poderia subir nelas,
mas fujo.
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