sexta-feira, 28 de janeiro de 2011

a grande bola que gira no espaço

leio com a segurança de quem pisa na terra firme
mas sabe que se trata de uma grande bola que gira no espaço sem ponto fixo

leio com a sensação de estar fora e dentro do que meus olhos decodificam
mas sabe que a posição de quem vê é apenas mais uma perspectiva.

Eu leio para sentir e pensar, não para acumular
para colocar os pés no chão e para imaginar, não para explicar
para expandir e aprofundar, não para alinhar
para me perder e me encontrar, não para apontar

para expor e para transpor, não para impor
para conhecer e aprender, não para prender

e por ler, eu escrevo
e mesmo que eu tema o que escrevo, não temo tanto assim
porque sei de duas coisas:

a primeira é que escrevo no que acredito
e não me canso de ter no que acreditar
ainda que mude de ideia

a segunda é que escrever é como criar um bicho
se você pretende mostrar aos outros
não pode temer mostrar o bicho que você ama
não pode temer que ele não tenha sido adestrado do jeito que
os outros queriam vê-lo.

você pede uma pata,
e ele avança
você diz 'role',
e ele morde.

domesticada e selvagem
a palavra sai de você
e você é filho da terra

que acorda e conscientiza-se: o bicho não nasce por sua causa... ele sai do útero da terra
e à terra retornará.

O que você escreve, ainda que tenha saído da sua mente,
são palavras já escritas soltas e unidas a que você atribuiu um significado
um palimpsesto escondido
um bordado desfiado...

sua mente é a própria linha torcida: as sinapses, as sintaxes e sínteses
que você insiste em ligar, desligar, amarrar, e enrolar
perdendo-se do começo ao fim desse cardaço
esquecendo-se de quando Quintana dizia
que 'quando vira nó já deixou de ser um laço'

tenta desamarrar o nó
vê a vida como um fiasco
e o que escreveu até então
um bicho de perdidos passos

mas esquece que não está só
que a palavra tem poder
e o poder deve ser religado:
por sinapses, mãos dadas e laços
por união que não limita-se a abraços
mas aos palimpsestos, os afiados bordados
às leituras que acontecem na terra
na grande bola que flutua no universo
na força do que você acredita
se o que você acredita ilumina e nos religa
no seu verso.

sábado, 22 de janeiro de 2011

"Metade vítimas. Metade Cúmplices. Como todo mundo"

A Mídia, a sociedade, e o seqüestrador do Ônibus 174



“Ele falou: ‘você aí de mochila, é estudante?’. Eu disse ”Sou estudante, sim”. Ele respondeu: “Então vá embora, porque você deve estar atrasado. Abre a porta e depois fecha por fora”. Aí eu falei: “Tá bom”
Passageiro do Ônibus 174, liberado por Sandro do Nascimento


A TV queria uma grande história para transmitir nacionalmente. Sandro do Nascimento, aos 22 anos, fez a ela essa ’gentileza’. Ao invadir o lotado ônibus 174, na zona sul do Rio de Janeiro, o rapaz, então perdido e sob efeito de drogas, deu à imprensa o filão de quatro horas seguidas para o dia 12 de junho de 2000: manteve 11 passageiros sob a mira de um revólver, no que seria um assalto ou um seqüestro, não se sabe bem ainda, no Jardim Botânico.

Ao redor, centenas de policiais militares com armas apontadas. A adrenalina envolvia todos os participantes daquele reality show de mau gosto, que terminou de modo trágico. A imprensa o cobriu do início ao fim, cada nuance, cada imagem colhida e auxiliada pelo próprio rapaz, que vez ou outra, simulava atos de agressão contra os passageiros. Anos depois, o depoimento das vítimas: toda aquela violência não passava de um teatro exposto para 60 milhões de expectadores em todo o Brasil. Enfim, e de modo escancaradamente tardio, 60 milhões de pessoas viram Sandro do Nascimento. Graças e ele, graças à mídia.

“Falei que seu nome seria Sérgio. ‘Tá ok, Sérgio?’. Ele disse: ‘então tá, tudo bem, meu nome é Sérgio. Pode me chamar de Sérgio’. Até o momento eu não sabia, ninguém sabia, que ele era o Sandro”, contou o policial designado a comandar a operação.Não importava muito a ninguém ali, à época, saber quem era Sandro. Tampouco aos policiais que, como relataram, eram pessoas sem treinamento ou auto-estima, que não conseguiam se inserir no mercado de outra forma e, em sua maioria, encaravam a profissão como uma forma de ‘prender e acabar com marginal’.

Com toda a prepotência de quem se perde no meio do caminho, a imprensa tentou de forma desastrosa apontar vilãos e mocinhos. O documentário de Jorge Padilha, no entanto, definido pela crítica como seguramente imparcial, preferiu ser mais adepto à famosa máxima de Jean-Paul Sartre e tratou os sujeitos envolvidos “metade vítimas, metade cúmplices, como todo mundo”.

O próprio documentário começava com a câmera percorrendo toda a cidade do Rio de Janeiro – começando pelo morro até os casarões– enquanto recolhe, em off, depoimentos de pessoas que, como Sandro Nascimento, viveram e vivem sob a máscara da miséria passada às vistas grossas aos olhos de uma sociedade predominantemente ‘classe média’, de uma imprensa superficial voltada a sensacionalizar o estopim, e de uma gestão pública alheia à base de uma pirâmide que, no final das contas, tem mobilidade social quase nula ou, no mínimo, questionável.

Em paralelo aos relatos de policiais, testemunhas e passageiros do ônibus 174, que relataram, cada um sob seu ponto de vista, o episódio do seqüestro ao coletivo, o diretor do documentário também colheu, numa narrativa cuidadosamente jornalística (agora sim!), depoimentos, documentos e períodos que narravam toda a vida marcada por perdas, mortes, fome, descaso, abandono e crimes, de um desconhecido Sandro do Nascimento. Sandro, quando ainda menino de rua, viu sua mãe, grávida, ser assassinada a facadas, enquanto se encolhia embaixo da mesa com medo de ter o mesmo destino. Sandro presenciou a chacina na Rocinha. “Ele estava descontrolado. Contava que a família toda tinha morrido, que não tinha nada a perder”, lembrou uma passageira do ônibus.

Como bem lembrou o relato de um sociólogo “esse Sandro é um exemplo dos meninos invisíveis que, eventualmente, emergem e tomam a cena, e nos confrontam com a sua violência, que é um grito desesperado, um grito impotente”. O depoimento foi seguido por algumas cenas cotidianas de meninos parados nos sinais, que tentam angariar uns trocados ao lado de desatentos cidadãos.

Em depoimentos das próprias testemunhas, pode-se ver a sensação de que todo o episódio 174 foi justamente alimentado e elevado pelas lentes das câmeras, pelos flashs das máquinas fotográficas:

- “Eu acho que a televisão permitiu que ele se sentisse poderoso, na medida em que ele sabia que estava sendo filmado, e queria ser filmado”.
- “A mídia é algo que traz confiança ao seqüestrador. É a certeza de que não vai ser executado, morto”.
- “O prolongamento daquela situação também servia como um espaço de significar alguma coisa a alguém, como um espaço de mostrar que ele tinha poder, que ele existia, e isso era uma coisa tão fundamental quanto resolver aquela situação e sair vivo”.

Nos últimos capítulos, o “gran finale”: Sandro pediu às vítimas que gritassem quando ele atirasse para ‘o nada’, enquanto as confortava assegurando que ninguém morreria ali. Ledo engano. O fim traçou uma torturante escolta de Sandro, já preso pelos militares, até a delegacia. Se ele chegasse vivo lá, o que não ocorreu. O anti-herói Sandro do Nascimento foi asfixiado em todo aquele trajeto, sob a insistente cobertura da imprensa em um helicóptero, no seu esperado distanciamento seguro. Fim de caso.
Ou melhor, show encerrado.
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