segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Machismo entre amigas

 

                                                

No domingo passado pedi perdão para uma amiga.
Acredito que tenha sido o pedido de desculpas mais sincero dos últimos anos (não que os outros não o fossem).
Pensei que não teria coragem de dizer a ninguém o que fiz de tão errado para ter pedido-o-pedido-de-desculpas-mais-sincero-dos-últimos-anos, mas eis-me aqui: contando para o mundo. (Vou contar tudo, menos o nome dela)

Não que isto seja alguma daquelas sensações inconscientes de redenção através da confissão. Minha herança católica perdida nunca foi de partir para esse rumo. Nada disso.
É que ficou uma lição tão importante que acredito firmemente que deva ser compartilhada para além da vergonha que sinto hoje.

Estávamos no fim da adolescência, ou no meio, não sei exatamente. E a minha amiga curtia livremente sua vida.
Ela saia quando queria. Beijava em quem sentisse vontade.

Apesar de todo o manual a que fomos condicionadas a crer que isso era errado.
E que só os meninos faziam isto, porque é da NATUREZA deles, não da nossa
Ela fazia as coisas do jeito dela. e seguia sua própria natureza.

os olhares começaram a ficar tortos. aqui e ali ouviam-se comentários maldosos, de um desrespeito disfarçado com perfeitas vestes de um moralismo. Aliás, vamos dar nomes aos bois e sermos diretos: o que o moralismo cobria (e muito mal) era um machismo atroz.

E eu ME incomodei.
Não com os maldosos, desrespeitosos, que tão cruelmente boatavam por aí
mas com a CONDUTA da minha amiga. que era livre, feliz, que exercia seu pleno direito sobre o SEU corpo e a própria vida,

Chamei-a para um canto e, duramente, despejei todo o meu machismo revestido de LIÇÃO DE MORAL..
acreditava, como tantos outros acreditam, que estava fazendo o certo,
falando certo,
que era para o BEM dela.

Passamos meses sem trocar uma palavra.

eu me perguntava o motivo da frieza.  Ela teria entendido o recado? repassava na minha mente toda a conversa (em que ela ficava calada quase o tempo inteiro) e não, não conseguia encontrar nada de errado no que eu tinha dito. Ela um dia haveria de entender e me agradecer por eu ter sido a amigasincera que abriu seus olhos.


Pouco a pouco, fomos restabelecendo nossa amizade.

E eis que quem abriu os olhos fui eu.
Leituras e lições reais de vida( e não de moral) me tiraram da cortina de fumaça. Comecei a estudar e a reproduzir tudo o que passava a entender sobre como nós, mulheres, sofremos. Uma violência que está no estupro e na palavra. Porque, aliás, as palavras também nos violentam dia a dia. E nós as naturalizamos ao tentar nos esquivar delas.

E quando não conseguimos evitar a violência, somos condicionadas a pensar que nós é quem fomos as erradas.

Eu nasci num mundo assim. de certos e erradas. Fui criada assim. Para todos os lugares que fui, era assim. É assim que as mulheres pensam quando passam pelas ruas e ouvem assobios e comentários pela roupa que vestem, pelas escolhas que fazem.

São formas de violência que só são vistas quando o corte é físico.
Não conseguimos lidar com uma dor (que, certamente, também é física) emocional pela simples condição de sermos mulheres. E reproduzimos isso.

E eu soube reproduzir com, digamos, uma sangrenta maestria. Todo o preconceito, toda a história de violência contra a mulher foi despejada naquelas palavras que disse à época a minha amiga.
depois de meses intrigada e alguns dias aflita (quando então soube o motivo), decidi procura-la:

Se hoje quero lutar por uma violência de gênero institucionalizada, seja na obstetrícia, ou na política, ou onde quer que seja, é no mínimo incoerente que eu não lute contra o meu sutil (e não menos massacrante) machismo.
que machucou minha amiga,  que me machucou.
Quase acabou com a amizade que tínhamos.

Ela me perdoou.
E eu prometi que carregaria por toda a vida essa lição.
E que por mais que a mágoa tenha ficado entre nós (porque fica),
vou fazer desse limão um rio de limonadas, para não permitir que nada parecido se reproduza impunemente onde eu estiver presente.

...
seria um fim feliz para a história,

só que não.


Em meio à conversa de pedido-de-desculpas, minha amiga dispara:
"lembra daquele dia em que falei sobre aquilo de você ter escolhido o parto em casa?"

Lembro, claro que eu lembro.
na ocasião, já tínhamos feito as pazes. Eu já estava no fim da gestação e me envolvia em (mais) uma discussão sobre minha escolha em parir em casa. Em meio às conversas, ela disparou algo como: "você quer que seu filho morra".
Não preciso dizer que, diferentemente dela (que ficou em silêncio quando fui lhe dar a lição de moral-machista), praticamente voei em cima (calma gente, com palavras).

Ela então continuou:
"quando você foi para a cesárea, eu ia até te dizer algo como 'eu te avisei', mas sabia que não era legal no momento..."

mas que merda (desculpa o palavrão, mas foi mesmo o que eu pensei)
ela entendeu nada, ou quase nada do que eu falei!!

lembrou do desfecho do meu parto domiciliar - a transferência para o hospital e a cesariana - como um reforço para o tremendo preconceito de que minha escolha por parir em casa era uma loucura (foi a decisão mais sábia que já tomei na vida.. pena não ter sido tão sábia na logística toda)

...

Todo mundo sabe que sou uma pessoa que fala muito quando quer, principalmente quando estuda e conhece o que diz.
Que tanto sou a favor do parto humanizado e do parto domiciliar em gestantes de baixo risco,
que hoje estudo sobre isso.  Que estudo o parto humanizado JUSTAMENTE em contraposição à violência obstétrica, que é mais um tipo de violência CONTRA A MULHER.

Quando ela me soltou aquele exemplo, instintivamente quis lhe contar sobre tudo o que ela NÃO sabia: como foram os três dias em que fiquei em trabalho de parto,
que foram as intervenções da equipe e da família que atrapalharam minha vida,
que da próxima vez vou ter um parto em casa de verdade, porque não terão médicos, e sim parteira!
que todo um aparato mundial de evidências científicas já confirmou  que o parto domiciliar é mais SEGURO do que um parto hospitalar,
que levantamentos indicam que uma a cada quatro mulheres sofrem violência obstétrica,
que as dores do parto são muito mais as dores da violência obstétrica,
que no hospital-seguro, eles te mutilam, te mandam fazer o que o corpo não está preparado, te colocam hormônios sintéticos, te fazem cortes abdominais profundos sem necessidade dos quais tecnologia de pontos jamais poderá fazer com que teu corpo volte ao normal,
que te obrigam jejum e ingestão de líquidos, mesmo que seu parto demore horas,
que te obrigam a ficar deitada, o que aumenta a dor e fará te pedir uma anestesia que lhe fará perder o comando sobre seu corpo,

que o desconforto respiratório que meu filho sofreu é fruto da cesariana,
que a maior causa de infecções, mortes maternas, problemas com amamentação, depressão pós-parto, obesidade infantil, problemas com vínculo mãe-bebê, acontecem em decorrência da cesariana,
e que hoje em dia ela ultrapassou o número de casos de parto normal,
e que a OMS estabelece que apenas 15% dos partos sejam de cesariana.

que meu filho (e o de todo mundo que nasce em hospital) perdeu 30% do sangue com um corte no cordão umbilical precoce..

que todas, todas as pesquisas históricas revelam claramente que o comentário dela é um senso comum reproduzido
graças a uma história médica
cujos paradigmas do corpo
sobretudo do corpo feminino são,
simplesmente,
machistas.

...
eu me magoei, de verdade, ao vislumbrar a ideia de que ela ainda ache estar certa sem ter sequer conversado comigo sobre o assunto.

e eu podia ter falado tudo isso nesse domingo,
mas desta vez, fiz como ela: silenciei

sei que não poderia esperar dela um posicionamento diferente, quando até amigas brilhantes que são estudantes de medicina (e mulheres!) ignoram todos esses fatos em nome de uma cultura tecnicista e machista reproduzida ainda na faculdade em que estudam.

mas transformo essa mágoa numa esperança de que, de todo o coração,
ela abra os olhos (e isto é uma lição de vida, não de moral):
antes que seu próprio corpo e o dos filhos que ela venha a ter sofram com mais essa agressão.

De um modo ou de outro,
não deixarei mais nunca que o machismo nos separe,
espero trabalhar muito para que a luta contra ele nos alerte,
e nos una.
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