quarta-feira, 15 de setembro de 2010

"Vou consertar a minha asa quebrada e descansar..."

Foi há alguns anos. Entrei na sala e avistei uma borboleta na ponta da janela. Peguei um livro, sentei no sofá, pés no centro. Li umas 18 páginas de uma Anne Rice, Pedro Bandeira, ou algo assim, com todo o fôlego do mundo. Quando estava me levantando para assaltar a geladeira, olhei acidentalmente para a janela de novo.

Fiquei sem entender e cheguei bem perto, ainda que receosa. Como assim a borboleta ainda estava ali? Com janela aberta, tempo bonito e tudo mais... Como é que pode? Foi então que percebi: um pedacinho bem pequeno de uma de suas asas estava quebrado. Era tão fina e delicada a asa que mais parecia papel. E a ferida, um rasgão.

Lembrei: certo dia, uma tia me disse que se uma borboleta estiver com a asa quebrada, basta quebrarmos exatamente do mesmo jeito o outro lado que, por alguma explicação biofísica, ela voltaria a voar. Não hesitei. Peguei uma tesourinha, dessas de unha, segurei a borboleta com todo o cuidado do mundo e, desastrosamente, tentei esculpir a mesma brechinha do outro lado da asa.

Soltei. Ela não voou.

Peguei mais uma vez o que antes tinha sido uma minhoca e olhei direito: tinha cortado demais. Voltei para a asa quebrada original e cortei mais um pouco, para tentar igualar dessa vez. Sem sucesso.

Fiquei nervosa e parei. Eu estava mutilando a borboleta na tentativa de fazer com que ela voasse. E eu não sabia nada de borboletas ou de suas anatomias ou da física dos vôos. De borboletas eu só sabia que elas deram origem ao nome ‘Vanessa’, e isso tinha mais a ver comigo do que com elas. Bem útil! Eu estava trucidando a coitada, enquanto tentava abrir a mesma ferida do outro lado para que ela se libertasse.

A pretensão se esconde em coisas tão sutis, finas, pequenas, banais. Tentar cortar asas e querer que uma borboleta alce vôo é uma contradição cruel. Abrir feridas em um corpo sem conhecê-lo, mesmo que ‘com a melhor das intenções’ é insano, perigoso. Sob fortes camadas de ego puro e de um poder devastador, temos todos a fragilidade de um inseto cujo menor toque ou até a melhor das intenções pode mutilar.

Ainda assim, usamos a camada grossa de um poder ignorante para mexer e manipular o que não conhecemos, só porque achamos o outro nada mais do que uma ‘coisa’. Um crime ambiental, a leviandade de um falso-amor, a questionável hierarquia social, a politicagem, a ingenuidade com o efeito das palavras e dos sentidos, não passam de diferentes faces de uma irresponsabilidade mesquinha de quem acha que conhece, acha que sabe, acha que pode, acha que é melhor, acha que está fazendo o certo, acha que deve intervir, acha que os fins justificam os meios. Esquecem, como esqueci e volta e meia me pego esquecendo, que antes de tudo, mais do que tudo, não passamos de insetinhos com asas quebradas.

Final feliz: A borboleta, de algum jeito, aprendeu a voar com as asinhas rasgadas. E, sem rancor com quem a torturou (eu), ensinou aquela coisa clichê de que podemos sempre voltar a voar, só precisamos aprender como...


"Estou falando de amor, e não do que você pensa..."

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Política para quem precisa...


Se é deprimente e revoltante saber que a maioria de nós, alagoanos, vive em pobreza extrema – batemos o recorde nacional com 56%, segundo o IPEA –, acredito ser ainda mais desconcertante constatar que estamos entre os estados que mais sofrem com a falta de produtividade intelectual. Escolhi dizer ‘produtividade intelectual’ porque tentava imaginar qual outra expressão seria mais original para me referir à ‘educação’, essa coisa básica tão martelada que chega a ficar clichê nas campanhas políticas. Chega a encher de poeira logo depois.

Os monstros do analfabetismo e analfabetismo funcional extrapolam armários e papéis do IBGE e entram, preocupantes, na minha mente deslavada que não busca tanta credibilidade assim nas estatísticas. Acontece que, segundo dados desta vez colhidos pelo Tribunal Superior Eleitoral, aproximadamente um em cada seis eleitores em Alagoas não sabem ler nada. Dos cinco que restaram, um deles sabe basicamente apenas escrever o próprio nome.

Pronto: não vou mais falar de números. E antes que o caro leitor pense em ficar cansado, confie: essa matemática toda terá uma moral da história. Um tanto imoral, talvez. O problema é que, quando vejo estes benditos números, tento achar – quase sempre sem futuro – a lógica maior de tanta falta de mobilidade. Quando os tais dados revelam algum sinal positivo, comparo essa movimentação com a de um menino magrela subindo a ladeira da Catedral com 10 quilos de macaxeira nas costas ao meio dia: uma subida sofrida,suada e lenta.

Acontece que não há como deixar de observar o quanto esse caracol só nos deixa mais presos lá dentro. Tanta gente na miséria absoluta e tanta gente sem a consciência dos próprios poderes colaborando inconscientemente para que tudo fique assim. Deixemos então de lado essas contas doidas, esses cálculos perversos, que fazem acreditarmos que política é apenas uma ferramenta usada por gestores eleitos para teoricamente mudar números, alavancar capacidades, potências, dados. Quem quer saber dessa política? Para quem é essa política? Quem faz política? Quem a utiliza?

Para todas as perguntas, uma resposta: nós. Dados e dardos humanos, trabalhamos quatro meses no ano apenas para pagar impostos. Janeiro, fevereiro, março e abril, oito horas diárias, noites sem sono, trânsito, os sapos engolidos, a falta de tempo para família, para o lazer, para o amor. Tudo entregue a terceiros para que apliquem esse seu trabalho na calçada que você anda, na escola e na moradia do menino que te pede esmola e você fecha o vidro do carro. É o tal dinheiro público, esse que não reconhecemos como nosso, mesmo quando o vemos entrando em cuecas alheias, ou desviados em esquemas criminosos de deputados, prefeitos, senadores, governadores e presidentes.

Então vemos na TV, ouvimos no rádio – ou lemos, caso possamos – expressões esquisitas como ‘propinas’, ‘desvios de verba’, ‘impugnação’, ‘corrupção ativa’, “ação civil pública”. As palavras fogem de nosso vocabulário politicamente analfabeto. O tempo foge de nossas existências. As vidas fogem de nosso controle mais do que deveriam. Tudo isso simplesmente porque ‘achamos a política uma coisa chata’, porque não estamos tulhufas ao que diz respeito diretamente a nós, ao passado mal entendido que descambou nessa confusão, à nossa vida, à nossas amizades, amores, rotina, futuro, presente.

É o que Edgar Morin chamaria talvez de Antropolítica. A tal política do homem planetário, a consciência de quem somos e de que podemos tomar conta de nossas vidas, ao invés de deixá-las como barquinho solto na correnteza alheia. Isso requer saber números e coisas que, à primeira vista, têm menos graça do que a novela da oito. Implica em voltarmos e instigarmos nossa curiosidade sobre questões como, por exemplo, quem é o menino magrela? Será que ele sobe até o fim? E o que isso tem a ver comigo? Mas vá lá! Por mais pesado que seja, vale a pena olhar para além da macaxeira...







terça-feira, 24 de agosto de 2010

Liu e o Governador

Texto escrito pela amiga Renata Bertolino:


Eram 4h50 da manhã de domingo e Dona Jil, mãe de Alysson James da Silva, conhecido como Liu, já cutucava o garoto para levantar logo da cama. O dia quase já despertara de vez e todos se aperreavam em resolver os afazeres de casa, afinal, esse domingo era diferente, pois o “governador” iria passar na cidade e todos deveriam está prontos para recebê-lo.

Liu era um menino calado, como o falecido pai, analfabeto que morava com a mãe e mais cinco irmãos, sendo duas irmãs e três irmãos, em um povoado rural, com cerca de 2000 habitantes no interior do estado das Alagoas, chamado de Pé Leve.

Era agosto de 2010, e a campanha para administração executiva do estado estava frenética, em toda região não se falava em outra coisa se não nas eleições. Mas, o pequeno Alysson James não entendia o que aquilo significava, apenas sabia que era tempo de colecionar pequenos retratos de pessoas que, todos os dias insistiam em passear pelas ruas com barulhentos carros de som e muitas pessoas entregando fotos, que se acumulavam no chão e complementava sua coleção.

O tumulto na rua denunciava que haveria novidades no pequeno povoado de Pé leve. No meio da manhã a feira livre já estava sendo desarmada, as moças assanhadas estavam se arrumando, incluindo as duas irmãs de Liu, que estavam procurando suas melhores roupas para ocasião; seus irmãos foram cortar o cabelo e fazer a barba, enquanto Liu corria da feira pra casa com várias sacolas de verduras, raízes e carne nas mãos, pois sua mãe comprara muita comida para fazer o almoço antes da chegada do “governador”.

Na hora do almoço um de seus irmãos perguntou por que, que a mãe tinha cozinhado tanta comida? Dona Jil respondeu que o governador poderia fazer uma graça e almoçar com sua família.

Já passavam das 15h e todos do povoado aguardavam na calçada a chegada do “governador” e o pequeno Liu também correu para porta para aguardar.

Um forte barulho ouviu-se no Céu e todos saíram correndo em direção ao campinho de barro, aos berros – o governador chegou, o governador chegou!!! – Liu correu mais que suas pernas conseguiam aguentar, caiu, mas, conseguiu se arrastar até chegar bem perto do campinho, que ele jogava todas as tardes, e viu tocar o chão uma enorme máquina vinda dos céus, com um barulho ensurdecedor. Ele pensou ser um pássaro com asas no dorso que, ao invés de bater, elas giravam como carrossel. Encantado, ele não desgrudava os olhos daquele objeto voador que mobilizou todos da sua região para vê-lo no meio do campinho. Ele viu que algumas pessoas saiam de dentro dele e junto com elas a multidão seguiu. Foi quando alguém ao seu lado o empurrou chamando para acompanhar a procissão que partia, ele ainda admirado suspirou e disse que não poderia acompanhar a todos, porque queria ficar um pouco mais com o “Governador”. Talvez ele voasse mais uma vez e o levasse junto.


O mais incrível de tudo é que a experiência é totalmente real. O Liu existe e a Rê foi justamente aquela quem o chamou para acompanhar a 'procissão' e ouviu a resposta inesperada do garotinho...

terça-feira, 27 de julho de 2010

“Não acomodar com o que incomoda...”¹

Peço a licencinha para deixar aqui um texto da amiga Amanda Gabriela²


"Outro dia fiquei sabendo que uma grande amiga está passando por uma crise de identidade profissional. Tomei um susto, claro. Como aceitar que a minha maior esperança no jornalismo desse país anda cogitando a possibilidade de enveredar por outros ramos (ainda a serem descobertos), porque se sente limitada, desestimulada e sufocada no local em que trabalha?

Justo ela, tão íntegra e competente – a pessoa que faz a maior diferença, luta fervorosamente pelo que acredita e diariamente me convence de que ainda é possível sentir esperança nas pessoas e nesse mundo. Faça-me um pequeno favor: fique exatamente onde está e prossiga com seu belo trabalho, apesar de seja lá o que for. Foi o que eu tive a coragem de dizer num primeiro momento.

Sorte que a vida não é feita apenas de primeiros momentos. Foi preciso um segundo e um terceiro para que eu pudesse entender o que se passa realmente, e assim relembrar tudo aquilo que costumo defender pra mim mesma e para os outros. E o que costumo defender é “bonito e até romântico”, sempre diz meu sábio pai. Não que eu concorde plenamente, porque nesse ponto ele provavelmente está tentando desconstruir meus argumentos; mas há aí uma certa razão.

Afinal, existe coisa mais bonita do que ser coerente consigo mesmo? Ser fiel aos próprios princípios, valores, desejos e sonhos? Ou você conhece alguém que vive suficientemente feliz fazendo aquilo que não gosta (ou até gosta, mas não satisfaz), sendo obrigado a seguir determinada linha de comportamento e discordando avidamente da conjuntura predominante? Eu conheço vários – que fingem.

Que seja utópico e ingênuo, mas eu faço parte do time dos sonhadores coerentes. Se pra você ser coerente é passar num concurso público (qual for), pra adquirir a tão sonhada estabilidade e sossegar um pouco a cabeça no travesseiro... eu estou sinceramente contigo (a vida não está fácil mesmo). Mas vê lá, não vai depois fazer a coisa de qualquer jeito (digo, o trabalho); faz parte do pacote, além do salário, as horas intermináveis que você vai precisar cumprir durante os cinco dias da semana.

Se pra você ser coerente é estudar um pouco mais, se especializar, se qualificar, arriscar as economias num pequeno negócio, viajar pelo mundo, advogar, abrir um consultório... eu estou orgulhosamente contigo também, porque é isso que importa: o que te importa. E de preferência que, uma vez sendo importante pra você, de algum modo possa ser também para os outros.

Mas há ainda aqueles que, de tão coerentes com a própria índole, não sabem bem como proceder ou não se contentam mais com o que fazem porque acreditam que podem ir positivamente muito além, como parece ser o caso da minha querida amiga. Para esses, o meu apreço é ainda maior. Não me entendam mal, mas queria eu que existissem mais pessoas inconformadas nesse mundo. Pessoas com forças para mudar o que anda tortuoso, ou mesmo pra largar tudo e começar do zero, suportando todas as dificuldades que essa alternativa impõe, mas seguindo a vida com muito mais vigor.

Pode até parecer pouco racional, mas não deixa de ser bonito... e até romântico."

1. Trecho da canção " Criado-mudo", do grupo Teatro Mágico
2. Amanda Gabriela é concluinte do curso de Direito e minha amiga há cerca de 16 anos...



Agora sim,
antes de divulgar este texto, pedi (claro) a autorização da Amanda para postá-lo aqui. Ao receber a permissão, também recebi dela a incubência de intitulá-lo. Para quem não sabe, intitular textos é um desafio para jornalistas (e eu ainda sou uma - brincadeira!).

Pensei que o título deste texto bem que podia ser aquela propaganda da cerveja "Coragem para casar todo mundo tem. E para descasar, cadê?"... Sim, porque acredito que ao nos comprometermos com o que quer que seja estamos (ou não?), de certo modo, casando. Pode ser um relacionamento, um posicionamento, uma decisão, um curso, uma profissão, o que quer que seja. Quantas vezes entramos de cabeça e, ao vermos que o barco tá furado, ficamos parados, sentados, batucando na mesa e pensando, com pena-da-má-sorte, que estamos perdidos?

Chutar o balde requer, de fato, uma coragem para além do medo e para além dos 'e se's da vida... Isso porque a gente sabe muito bem que, a partir do momento em que falar em alto e bom que "não quer mais isso", teremos que ir até o fim com aquilo ou o chute interrompido vai causar uma situação insuportável, um desgaste que 'bem poderia ser evitado se não tivéssemos chutado nada e deixado tudo como estava'...

Acontece que deixar tudo como está é um chute contra nós mesmos: embora tudo esteja aparentemente no seu lugar, nós não estamos, e temos que admitir isso para que voltemos a fluir na vida, ou para permitirmos que a vida flua em nós. Qualquer coisa assim...

É por isso que não acomodo, não dá. Em nenhum sentido. Em nenhuma circunstância. Talvez eu seja do tipo que vive inconformada, que raramente tem sossego, mas é pior do que aquela falsa paz que não faz mais que ir apodrecendo aos pouquinhos..

sexta-feira, 21 de maio de 2010

A liberdade de perder...


E eis que acabou o sonho. Meu sonho de adolescência. Para muitos, um sonho besta. Mas era o meu sonho e não era nada besta. Era aquele em que eu dizia ‘depois dele, não vou querer mais nada na vida’. Realizei e tentei permanecer nessa realidade dia após dia: alimentar o sonho com mais sonho, com mais fé, com mais esforços.

“Como vai seu sonho?”, me perguntavam o tempo inteiro. E eu dizia, com todo o meu orgulho de tê-lo realizado: “vai bem. Olhem para ele. Posso tocá-lo!”. No fundo, talvez, eu quisesse dizer: “Experimentem tocar em seus sonhos também. É impressionante”.

Os dias passaram e acordei do sonho: a fé tinha se dissipado e os esforços só permaneciam graças ao fato de não ter ouvido minha mãe, quando criança, que me dizia: deixe de teimosia, menina! Ele se alimentava graças à minha teimosia em não reconhecer a mim mesma que não havia mais sonho, ali. Só uma ilusão infértil. Não havia mais por onde ir. Não havia mais frutos. Mas ser teimosa cansa quando você descobre que isso é tudo o que restou e que é tudo o que te impulsiona a levar a coisa adiante.

Joguei meu sonho para o alto de uma vez, no supetão, para não olhar para ele de novo me apelando: “Ei, eu sou seu sonho. Seu grande sonho. O que você vai ter depois de mim?”. Eu ia pagar para ver.

Paguei e não vi nada.

Aliás, corrijo-me, eu vi exatamente aquilo que temia: o nada. Um vazio puro. Sem cor, sem substância, sem transparência. Sem formas, sem qualquer forma de descrevê-lo. Não havia mais nada na minha vida, fora eu.

Embora pareça que esteja diminuindo a mim mesma, juro que não é isso. É que meu sonho era maior do que eu supunha que eu era. Lembrei-me até da charada do impossível: Se Deus pode fazer tudo, pode criar algo que não consiga destruir. Mas se Deus pode fazer tudo, como não poderia destruir esse algo?”.

Quem é maior? Meu sonho ou eu? Eu ou meu sonho? Meu sonho que se destruiu na rotina e nos problemas reais? Eu que o destruí com meus destrambelhos, minhas ansiedades, meu despreparo? Seja como for, ele se foi e eu continuei. Acreditem: É muito difícil continuar sem a grandiosidade de um sonho. Continuar sozinha. Com todos ao seu redor dizendo: “crie novas perspectivas, crie novas perspectivas. Não iria dar certo mesmo. Não pare para chorar”.

Fiz mais ou menos como disseram: Não parei, mas chorei, quase sempre um tanto às escondidas...Chorei por meu sonho besta.

Só que comecei a ter orgulho da tristeza e deixei de ver algo a mais do que essa sensação de nada: um alívio. Alívio de cair na real. Eu vivia dizendo que não tinha que provar nada a ninguém, mas esqueci que também não tinha que provar nada a mim mesma, e tentava provar a qualquer custo. Mas não era só isso. A sensação de alívio também vinha de uma descoberta que, à primeira vista, seria um tanto amarga: nada como não ter nada a perder! Nada a almejar também. Continuar só por continuar.

Eu sei que isso é só fase. Já já encontro um grande – talvez não tanto, mas mais ou menos grande – sonho pelo caminho, mas não posso negar que estou sentindo uma liberdade em não desejar. Não fazer questão, não ter que fazer, não ter que querer, não ter. não se afetar: faz tempo que isso não me ocorre.

Talvez nem demore muito tempo, por isso estou aproveitando cada segundo dessa sensação: fazer por fazer, sem me cobrar, a mim ou a ninguém. Não esperar nada. Eu sempre pensei que isso fosse litetatura de araque, auto-ajuda de segunda. Mas é sério: isso existe. É uma tristeza leve. O alívio de estar triste. O alivio de viver apenas de fatos.

Até que novos sonhos cheguem...

sexta-feira, 30 de abril de 2010

Relações honestas e coisas assim...


É confortante quando uma relação começa espontânea e, aliás, todas elas bem que deveriam começar assim sempre. A gente não fica com os músculos cansados de rir sem vontade, ou o peso na consciência de ter falado mais do que deveria, ou o desespero mental sob uma face inquieta em encontrar uma desculpa para cair fora daquele lugar da forma mais gentil possível. Sim. Nada como amigos assim. Amores assim. Irmãos assim.

Mas óbvio que não é só assim.

Acontece que, da mesma forma em que a gente baixa a guarda diante de um relacionamento que flui, acaba se acomodando naquele marasmo e esquece quando é obstruido por pedrinhas pequenas e deixa de desaguar e movimentar-se, ou, o que é pior, vai poluindo por invisíveis agentes externos.

Houve o tempo em que eu segurava no fio da navalha de pessoas que não mereceriam a confiança nem mesmo de um ouriço do mar. Em outras épocas, aprendi a ficar com a mente encucada com qualquer pessoa a quem ria de um jeito que eu - em meu pretenso feeling- julgasse torto.

Até aprender a aceitar as contradições, não conseguia conceber a ideia de que as relações podem ser limpas e honestas e, ao mesmo tempo, devemos estar alertas para que se conservem assim, saudáveis. Não atinava que, em nossos micro-universos, podemos ser tudo, fazer tudo, adormecer ou acordar tudo o que quisermos dentro desse sistema vivo e aberto que a gente chama levianamente de coração.

Nesse sisteminha vivo, aberto e pulsante, em que a gente absorve nervos, ideias e quereres de outrém; também influenciamos e somos influenciados; vemos e somos vistos; percebemos e somos percebidos; despercebemos totalmente, por fim, até onde vai a gente e até onde vai o outro. A gente se integra e se completa, se isola e se fragmenta, se descabela e se recompõe.. Fingindo controle absoluto, somos levados correnteza abaixo, numa água tantas vezes poluída, porque esquecemos de simplesmente cuidarmos uns dos outros, de estarmos por perto para segurar as mãos, mesmo que signifique levar uma chave de braço logo depois. Consternados , descobrimos que sempre podemos fazer alguma coisa por alguém. Inexplicavelmente, quase sempre é melhor do que fazermos por nós mesmos.

Deve ser mesmo coisa da idade. Chega um tempo em que o pavio encurta e a paciência se desfaz para o monstro lunático do ego e de outras ilusões que acreditam que benefício é estar no lucro. Por mais incompreensível que pareça, descarto meu medo de me deixar levar com olhos bem abertos e vou muito bem acompanhada dos meus poucos e raros que ainda acreditam - apesar de tudo - na bondade e na franqueza dos mais sutis, na complexidade dos mais simples, na loucura dos mais lúcidos, na autoridade dos mais servis, na grandeza de quem não se importa com o umbigo (mas com um palmo acima dele), na luz de quem, seja onde estiver, sempre estará lá, e no meu desejo de estar exatamente onde estou também:

por meus amigos, por meus amores, por meus irmãos.

quinta-feira, 25 de março de 2010

As abissais




Como diria qualquer pessoa, tudo é mesmo um grande palimpsesto. E como sou uma usuária-consciente-desse-fato, vou contar: eu estava profundamente chocada com alguns pensamentos que cheguei a ter num dia super frio, com muita chuva e trovões, quando abri o twitter e me deparei com uma das @pequenasepifanias de Caio Fernando Abreu – o avassalador.

Ponto. De repente do frio fez-se o calor e lá estava eu, de volta à superfície, com um leque na mão, tomando suco de caju e querendo me divertir. Superfícies. São lindas e boas. Não fazem nada mal a ninguém.

Mas exigimos profundidades. ‘Elas são necessárias’. As profundidades precisam alimentar nossas carências de bases seguras, porque sabemos intimamente que pisamos em ovos. E olhamos para baixo com olhos esbugalhados, vendo que, sob os ovos, há cascas de banana. E sob as cascas de bananas, um buraco negro de medos e escuridão quando se tenta, de olhos cerradíssimos, enxergar o futuro. E a palavra ‘futuro’ está de olhos fechados para todo mundo. Até para o diretor do Big Brother Brasil, juro.

Antes que me pergunte, não estou falando sobre as ‘garantias’ ou ‘promessas’ que fazemos e recebemos de nós mesmos e dos outros, porque aí estaria tratando de uma insegurança muito egoísta. Mas das profundidades. Nós as queremos mais do que tudo, porque achamos que quanto mais profundas as coisas, mais verdadeiras. Quanto mais fundo tentamos ir com nossas palavras aos sentimentos, mais verdadeiros achamos que são eles, os sentimentos. Aliamos a profundidade à verdade, porque a verdade parece trazer uma tal segurança que nos leva a impulsivamente (veja só que paradoxo) adentrarmos ainda mais.

Mas e se mergulharmos profundamente a uma verdade interior e descobrirmos que não passava de uma grande mentira? E aí? Vamos cavar mais um pouquinho como um cachorro com Transtorno Obsessivo Compulsivo? Não, por favor. Vamos cair na real. Vamos nos ligar! Isso não é mergulho, é afogamento. E de afogamentos, já basta o que esse mundão nos dá, com a camada de ozônio parecendo uma peneirinha. Com um monte de gente morrendo de fome, de drogas, de doenças, ou de descaso, sob os nossos narizes congestionados de desgraças e perfumes da Natura.

Não! Nada de nos afogarmos – eu repito e insisto comigo mesma – nessas águas nem um pouco límpidas, quando tudo o que precisamos, muitas vezes, é de um ar puro, de um sol e de um mar, ou de uma montanha com cachoeira, ou de sensações simples como sentir-se bem, fazer com que alguém se sinta bem também, e todas aquelas coisas que a (nossa) natureza nos dá na em plena, bela, inconstante e verdadeira superfície. De dentro para fora e de fora para dentro, como é nossa respiração (e eis que agora me deparei que quase não respirei nesse parágrafo). Mergulhar e retornar para superfície.

Então deixa eu dizer logo antes que perca a graça e o sentido. Caio Fernando comentava com toda a propriedade– e depois disso tudo, repito eu e peço-lhes:

“Não me exijam profundidades abissais nesse calorão. Quero o meu leque!”.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

como dois e dois são cinco




Paradoxais? Ao meu ver, todas as tentativas de compreender sentimentos alheios o são, caso queiramos defini-los em algumas palavras, de doce, ardente ou amarga pronúncia, e sob cuja harmonia chamamos de ‘boa literatura’. Rejeitar o momento da decisão, prostrar-se ‘e deixar que a vida resolva por si’, parece-me, em discursos assim, uma sugestão agradável. Mas como deixar que ‘a vida resolva’ se a vida somos nós?

Enquanto deixamos a vida resolver, a morte nos olha com certa piedade, até certa ironia, quase sussurrando-nos que ela é a única a quem poderemos – querendo ou não – contar e, por isso, deveria ser justamente a quem nunca devemos ignorar.
Com o nó no peito de quem teve lá suas tentativas que deram errado, com todas as palavras arremessadas e as que ficaram em banho maria, sorrio para ela de volta e a asseguro: não a ignoro.

E ela sabe que, com meus olhos cansados de pequenas perdas desnecessárias, maus entendidos, esperas inúteis, crimes fúteis, eu não a ignoro. Com meu passo apressado voltado ao presente, meu tendões inflamados despreparados e insistentes, mesmo que tentasse, não conseguiria mais ignorá-la.

E ela sorri vitoriosa, já certa de que, como numa fila em um matadouro, mesmo que entre piruetas e fantasias, irei (iremos) até ela, e como bichos que somos, é irônico não sentirmos o cheiro do que ela já sabe, mesmo distraída: até o último instante seremos (serei), deveremos ser.. carne VIVA.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Desvalorizei as paredes


Trabalhei na Apala como voluntária por uns três anos... era o que chamam de 'brinquedista' e fazia parte da comissão do Cine-Apala (promovíamos um filme mensalmente e, em seguida, discussões com as crianças sobre os temas).. Além disso, ia para lá duas vezes por semana, aproximadamente.

Para ser sincera, eu não trabalhava nada. Só brincava! nós fazíamos coisas divertidas.. Os maiores esforços eram no sentido de que aquelas crianças, todas elas, se mantivessem crianças, apesar de tudo.. e era super fácil isso. Ao contrário dos adultos - tem pouquíssimos lá, porque a Apala é exclusivamente para crianças - elas, claro, sentiam as dores, as ânsias, o mau humor na hora em que passavam por uma quimioterapia ou coisa assim.. mas passada a sensação ruim, a febre, o cansaço.. elas já estavam brincando com a gente, pulando.. rindo.. Fazíamos, aprontávamos, discutíamos de tudo. Lembro quando passei um tempão sem ir lá, e um dia cheguei e encontrei o Erivan - 11 anos, muito meu chapa, me ensinou a fazer caixinhas de presentes de papel e ser 'goleira' com uma perna só...- e perguntei: "E aí, Eri.. o que anda fazendo da vida??" Ele respondeu na hora: " Arte, né, tia??". O 'artista' hoje tem seus 14 anos, e ganhou uma prótese no ano passado.

Aprendi coisas incríveis.
A ser mais criança do que quando eu tinha a faixa etária de criança (e, com essa minha voz, não seria difícil retornar à infância sempre que quisesse).. a inventar brincadeiras para tornar as coisas mais leves.. a improvisar..a amar e admirar aqueles guerreiros-mirins que, por não possuírem a exata medida do que estavam superando, simplesmente superavam com toda dignidade e doçura que, sinceramente, eu não sei se teria se estivesse em seus lugares. Eles eram lindos, sabiam bem de suas medidas infinitas e, juro, não se limitavam por dizerem a eles que tinham câncer, ou eram meramente crianças, ou pobres, ou pequenos e frágeis..

Mas aprendi coisas mais graves.
A ter o maior papo cabeça com a Lu, com a Maria do Carmo, e, quatro dias depois, descobrir que não iria mais ver elas. A passar uma tarde inteira com o Erivaldo falando sobre minhas dores de cotovelo e sobre a saudade dele de Jequiá da Praia, e, a noite, saber que não iria mais encontrar ele... a traçar planos mirabolantes com a Rose sobre como a mãe dela iria deixar ela namorar e a escolhermos perucas e pulseiras no bazar da Apala. A jogar vídeo-game e brigar, brigar mesmo, com o Wellington porque ele se aproveitava da minha burrice no jogo e ficava enrolando, e, no dia seguinte, saber que ele teve a pior noite de todas, para não ter mais nenhuma... tudo isso para ficar refletindo sobre essa coisa de se perder a quem se ama (a que será que destina?)

Eles aprendiam a ir.. e eu, a ficar.. e a não mais desconsiderar ou esquecer a possibilidade da minha própria 'ida'.. eu tinha tanta raiva quando isso acontecia.. Chorava horrores, jurava para mim mesma que não iria mais para lá. Não queria me envolver, não queria ver eles sofrerem para, em seguida, sofrer com o desaparecimento deles

Se eles estavam tristes, nós fazíamos fantoches, pipoca, e ficavam alegres. Se estivessem brigando, conversávamos e eles faziam as pazes.. Se estivessem tímidos, dávamos um jeito de desarmá-los. Se sentiam dor, ficava ali, quietinha, dando uma força e concentrando todas as minhas forças mentais para que aquela dor passasse, mesmo sabendo que só o remédio e o tempo, talvez, pudessem curar...

Mas, e se eles desaparecessem? O que poderia fazer? Nada. A morte era a única coisa irreparável, irrevogável, definitiva. Não sei como, mas, pouco a pouco, a raiva se transformou em um respeito e em um raciocínio infantil de que, para compensar minha impotência diante dela (da morte), eu decidisse que absolutamente todas as outras coisas - na vida - fossem possíveis e, mais que isso, executáveis... ou seja, o que eu pudesse fazer para que todas as coisas boas possíveis pudessem ser feitas, eu faria.


É aquela coisa de 'viver intensamente', mas não desse jeito leviano a que as pessoas usam, sabe? Pelo contrário..com maior responsabilidade do que quando achava que tinha a vida inteira para recuperar as coisas.. e com maior abandono do que quando eu achava que não teria o dia de amanhã... queria que o que tivéssemos de vida fosse, de fato, aproveitada, entre nós... Era só uma coisa, digamos que paradigmática, que me impulsionava a pensar que, “putz, se eu estou viva, então por que não?” Por que não arregaçar as mangas, e cair no embalo das coisas que acredito? Por que ter medo e me render ao não-fazer, considerando o quão é transitória, inconstante, indefinida, imprevisível..essa roda viva.. e o quanto ela é traiçoeira e pode parar a qualquer momento, ou 'carregar nosso destino para lá'.. enquanto nos preocupamos com meras paredes, com medos de perda, de fim, de inícios.

Não me tranco mais em minha 'casa'..Pego meu colchãozinho e o coloco na porta, e prefiro dormir na insegurança de um ar puro e livre.. As desvalorizei..tal qual Mia Couto..

Desvalorizei as paredes.

sábado, 16 de janeiro de 2010

E o que é que eu tenho a ver com isso??



Já vi imagens demais, informações demais. Gente com areia e sangue misturados no corpo. Sangue e pedras contra uma guerra em que não há defesa, ou por onde se esconder, fugir. Como naqueles sonhos angustiantes em que a gente corre e corre contra um monstro atrás de nós e sentimos não ter sequer saído do lugar. Mas os sonhos possuem a vantagem de acordarmos e sabermos que tudo estará bem de novo.

Como eles têm dormido? Como têm acordado todos esses dias? Como têm lidado com a perda violenta, nessa briga totalmente desleal com a natureza?

Que tipo de pesadelos lhes são melhores do que a realidade em que são obrigados a suportarem dia-a-dia, sem o direito de acordar e tudo ficar bem? Mas há uma diferença entre morrer de fome aos pouquinhos e a implacável fúria natural que não escolhe a quem vai destruir.

As catástrofes naturais nos chamam uma atenção que não nos provoca. Não temos como lutar contra a natureza, afinal de contas. Muito nos impressionam os números, as mortes, os ferimentos, os gritos silenciosos por socorro, milhares e milhares e milhares de corpos em vala comum... mas àquilo chamamos com nosso distanciamento seguro de ‘tragédia’.

Morrer de fome já é algo mais silencioso, sequer desperta tanta atenção. São quatro milhões de casos isolados, apenas. E, bem sabemos, chega um tempo em que o caos corriqueiro deixa de incomodar tanto. Os sentidos deixam de nos alertar que aquilo ali não é normal, não é natural, não pode ser.

Mas de uma coisa fiquemos certos: antes mesmo do terremoto, eles já sabiam o que é viver de escombros. Para quem não sabe – e isso não é uma metáfora - no Haiti, as pessoas comem lama.

Entretanto, há os que dizem ‘estamos aqui, estamos longe, temos nossos próprios problemas’. Nesse meu aprendizado de geografia que nos ilha e nos separa, não sei a quantas milhas estamos de distância daquele lugar. Lembro-me das aulas de português e da insistência quase caxias do professor em nos dizer do erro, do pecado que é modificarmos as pessoas gramaticais com tanta freqüência numa só redação. Ou se usa ‘eu’, ou ‘tu’, ou ‘ele’. Ou se usa ‘nós’, ou ‘vós’ ou ‘eles’. E eu me pergunto, ainda geograficamente desnorteada: quem somos nós e quem são eles?

Vejam bem como são as coisas: 90% do nosso corpo é formado por bactérias. Ou seja, ‘elas’ formam ‘nós’. Igualmente podemos nos referir a ‘nós’ quando dizemos ‘nós maceioenses, nós alagoanos, nós brasileiros, latino-americanos, terrestres. Nós, de Alagoas e do Haiti, fazemos parte do mesmo planeta e, portanto, somos sim ‘nós’, querendo ou não.

E por isso precisamos enxergar de uma vez por todas que ‘eles’ somos nós. Precisamos que cada ‘eu’, por maior ou menor que se sinta, compartilhe da sensação de 'nós' e cumpra nada mais do que a responsabilidade – porque onde há sobras há falta - de salvar a eles. Daí vamos cuidar de nós. E fazermo-nos bem.


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