Fiquei sem entender e cheguei bem perto, ainda que receosa. Como assim a borboleta ainda estava ali? Com janela aberta, tempo bonito e tudo mais... Como é que pode? Foi então que percebi: um pedacinho bem pequeno de uma de suas asas estava quebrado. Era tão fina e delicada a asa que mais parecia papel. E a ferida, um rasgão.
Lembrei: certo dia, uma tia me disse que se uma borboleta estiver com a asa quebrada, basta quebrarmos exatamente do mesmo jeito o outro lado que, por alguma explicação biofísica, ela voltaria a voar. Não hesitei. Peguei uma tesourinha, dessas de unha, segurei a borboleta com todo o cuidado do mundo e, desastrosamente, tentei esculpir a mesma brechinha do outro lado da asa.
Soltei. Ela não voou.
Peguei mais uma vez o que antes tinha sido uma minhoca e olhei direito: tinha cortado demais. Voltei para a asa quebrada original e cortei mais um pouco, para tentar igualar dessa vez. Sem sucesso.
Fiquei nervosa e parei. Eu estava mutilando a borboleta na tentativa de fazer com que ela voasse. E eu não sabia nada de borboletas ou de suas anatomias ou da física dos vôos. De borboletas eu só sabia que elas deram origem ao nome ‘Vanessa’, e isso tinha mais a ver comigo do que com elas. Bem útil! Eu estava trucidando a coitada, enquanto tentava abrir a mesma ferida do outro lado para que ela se libertasse.
A pretensão se esconde em coisas tão sutis, finas, pequenas, banais. Tentar cortar asas e querer que uma borboleta alce vôo é uma contradição cruel. Abrir feridas em um corpo sem conhecê-lo, mesmo que ‘com a melhor das intenções’ é insano, perigoso. Sob fortes camadas de ego puro e de um poder devastador, temos todos a fragilidade de um inseto cujo menor toque ou até a melhor das intenções pode mutilar.
Ainda assim, usamos a camada grossa de um poder ignorante para mexer e manipular o que não conhecemos, só porque achamos o outro nada mais do que uma ‘coisa’. Um crime ambiental, a leviandade de um falso-amor, a questionável hierarquia social, a politicagem, a ingenuidade com o efeito das palavras e dos sentidos, não passam de diferentes faces de uma irresponsabilidade mesquinha de quem acha que conhece, acha que sabe, acha que pode, acha que é melhor, acha que está fazendo o certo, acha que deve intervir, acha que os fins justificam os meios. Esquecem, como esqueci e volta e meia me pego esquecendo, que antes de tudo, mais do que tudo, não passamos de insetinhos com asas quebradas.
Final feliz: A borboleta, de algum jeito, aprendeu a voar com as asinhas rasgadas. E, sem rancor com quem a torturou (eu), ensinou aquela coisa clichê de que podemos sempre voltar a voar, só precisamos aprender como...